Adeus, Kevin

Como esperado, a Confederação Sul-americana de Futebol (Conmebol), depois de ameaçar ser o que nunca foi – séria e severa em punições -, decidiu dar arrego ao Corinthians no caso que resultou na morte do boliviano Kevin Beltrán Espada, de apenas 14 anos, no jogo San José x Corinthians. Conforme anunciado pela confederação na quinta, o Timão vai ter que pagar US$ 200 mil (R$ 400 mil) de multa (pelo quê? É isso que vale o Kevin?) e sua torcida não vai poder comprar ingressos para jogos fora de casa na Liberadores (nossa, que punição…). Ah, o San José vai ter que pagar US$ 10 mil (R$ 20 mil) de multa também.

Já fiquei com nojo só por isso, mas aí vem o Ubiratan Leal, no ótimo Trivela, e calcula que “coincidentemente”, R$ 400 mil é o que a Conmebol deixaria de ganhar se o Pacaembu ficasse fechado nos jogos do Corinthians na primeira fase da Libertadores. Como vocês sabem, a confederação (assim como a nossa FCF nos jogos do Catarinense) leva 10% da renda de todos os jogos das competições sul-americanas. São os intere$$es, amigos.

Kevin poderia ser a gota d’água, o “chega!” para o início de mudanças profundas no futebol sul-americano no que diz respeito ao combate à violência. No fim, vai virar US$ 210 mil nos cofres da Conmebol e em breve será esquecido. Diria que Kevin morreu pela segunda vez na quinta-feira.

É triste. Um guri de 14 anos morreu com um projétil de 20 centímetros enterrado no cérebro dentro de um estádio de futebol e nada vai acontecer. A Libertadores vai continuar, o Corinthians vai continuar, o San José vai continuar, como se nada tivesse acontecido. Os direitos dos consumidores serão preservados, os clubes não serão punidos porque são “inocentes” e a morte de um guri de 14 anos vai ser apenas mais um número nas estatísticas de violência no futebol. Assim como a próxima, que deverá ocorrer em breve. E a seguinte. E a que vir depois dessa. Aguardem.

Aí eu lembro que em 1985 aconteceu aquele famoso caso da final da Copa dos Campeões da Europa entre Juventus (ITA) e Liverpool (ING) no estádio Heysel, em Bruxelas, na Bélgica. Briga nas arquibancadas e 39 pessoas, a maioria, italianos, morreram. Foi o ápice de uma série de casos de violência envolvendo torcidas inglesas. E as autoridades decidiram tomar uma atitude. A Fifa? A Uefa? Não, a própria federação inglesa de futebol (FA) e o governo britânico.

Muitos lembram dos cinco anos de suspensão das competições europeias imposta aos clubes ingleses pela Uefa – a TODOS os clubes ingleses, não só ao Liverpool -, mas poucos sabem que a própria FA inglesa já havia decidido retirar seus clubes dos torneio continentais antes da decisão da Uefa. Foi depois de uma reunião entre Ted Croker, secretário da federação, e a primeira-ministra britânica, Margareth Thatcher.

Disse Ted Croker à época, segundo informa a BBC:

There are many of us who don’t want to see us back in Europe until we have got our own house in order (Há muitos de nós que não nos querem ver de volta à Europa até que tenhamos nossa própria casa em ordem).

Já Margaret Thatcher mandou essa:

-“We have to get the game cleaned up from this hooliganism at home and then perhaps we shall be able to go overseas again (Nós precisamos limpar o nosso futebol desse hooliganismo e, após isso, talvez nós estejamos prontos para ir ao exterior novamente).

A punição da Uefa nem seria necessária. Os próprio ingleses entenderam a gravidade de sua situação e “puniram-se” na esfera esportiva, saindo dos torneios europeus. Isso não acabou com o hooliganismo – aliás, nada, até hoje, acabou com ele -, mas ajudou a criar a consciência de que algo deveria ser feito para combater a violência no futebol inglês, como punição severa aos criminosos, revistas rigorosas e, infelizmente, proibição de muitas coisas em estádios. Outra tragédia, em 1989, quando 96 pessoas morreram por causa de superlotação de um estádio em Sheffield, num jogo entre Liverpool (de novo… embora não tivessem culpa nesse caso) e Nottingham Forest, acelerou o processo de melhoria de infra-estrutura nos estádios ingleses. Por exemplo, os alambrados de ferro, onde muitas pessoas morreram esmagadas, não existem mais, como a gente pode notar a cada rodada da Premier League.

A autopunição foi o começo de tudo. Serviu para tomada de consciência, para despertar o sentimento de que aquilo não poderia continuar mais. Mas isso foi na Inglaterra. Por aqui, não se ouve um “ai” sobre medidas sérias para combater violência no futebol. Ações com pouca efetividade, como Justiça Presente, é o máximo que se faz. Somente em 2012, o Brasil registrou 17 mortes ligadas a futebol, recorde mundial. Agora, exportamos a nossa violência para os países vizinhos. Kevin foi morto na Bolívia, jogadores do Palmeiras foram agredidos pela própria torcida palmeirense na Argentina. Vem mais por aí. E não somos os únicos – argentinos, uruguaios, paraguaios etc., todos têm seus problemas.

E não fazemos nada. Não punimos esportivamente o Corinthians, ou qualquer outro clube, ou todos os clubes, porque eles são “inocentes”, não foi a instituição que acendeu o sinalizador. Não punimos a torcida, porque 30 milhões não podem pagar pelo erro de um, ou de meia dúzia. Não fazemos nada pra começar, porque senão vai ter que fazer muita coisa depois. Se fizerem, que façam com o clube dos outros, não com o meu, ou, se fizerem com o meu, façam com o dos outros também. Kevin, Ivo, que se danem.

Enquanto a gente não toma coragem pra pegar a faca e cortar a própria carne, como os ingleses fizeram, vamos usá-la para fatiar e saborear um pedaço da pizza paraguaia (a Conmebol tem sede no Paraguai) e de mais uma punição “pra inglês ver”, se me permitem o trocadilho.

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